13 de mar. de 2012

II FESTIVAL DE ÁGUAS CLARAS


Eu estava com dezenove anos de idade e trabalhava no extinto Banco do Commércio e Indústria de São Paulo quando ouvi falar pela primeira vez a respeito de um festival de rock que se realizaria numa fazenda no município de Iacanga, cidade próxima a Bauru no estado de São Paulo. Era o ano de 1975 e esse festival de fato aconteceu nesse ano e foram convidadas bandas de rock e apenas dois ou três cantores. Os grupos estavam quase todos no auge de suas carreiras e entre os mais famosos até hoje estavam Mutantes, Som Nosso de Cada Dia e O Terço e os cantores Jorge Mautner e Walter Franco. O nome dado foi Festival de Iacanga e eu por falta de estrutura, grana e tempo, tive que me conformar. Apesar da grande vontade, não pude ir a esse grande festival. Foi uma espécie de Woodstock no Brasil, onde tudo rolou num clima de paz e amor, foi consumida muita droga e feitos muitos filhos entre uma banda e outra no palco e que pela pouca divulgação esse festival ficou quase só na memória de quem lá esteve.
























Tinha que fazer essa introdução pra falar de fato do maior e melhor festival já acontecido em nosso país só com músicos do Brasil. Estou falando do II Festival de Águas Claras. Ficou conhecido como II Festival porque o atrelaram ao de 1975, antes chamado apenas Festival de Iacanga. Como aconteceram quatro festivais na mesma fazenda, achou-se melhor chamar a todos de Festival de Águas Claras. Soa mais bonito. E dos quatro, o segundo foi, sem dúvida, o melhor e mais bem organizado. Estive no segundo e no terceiro. No segundo, tudo era novo pra mim e para a grande maioria de jovens que lá estiveram nos dias 4, 5 e 6 de setembro de 1981.
Vou procurar não ser muito técnico e detalhista pois acho até que nem interessa muito. Fomos em quatro amigos de carro, um Corcel em muito bom estado pertencente a um grande amigo chamado Zé Durval. Saímos de madrugada de São Miguel, e, numa viagem tranqüila, chegamos antes da hora do almoço naquela fazenda que já parecia uma grande colcha de retalhos coloridos quando vista de longe. Eram milhares de barracas de todos os tipos, tamanhos e cores e centenas automóveis. E muita gente circulando pelo pasto ralo e seco daquela fazenda. A gente não tinha nem idéia do que estava por vir.















No caminho entre Bauru e a fazenda, esse era o visual que nos acompanhou durante todo o percurso. Caroneiros com suas mochilas, aos montes. Não havia transporte regular para a zona rural de Iacanga naquele tempo. Muitos desse caras não tinha nem ingresso e fizeram peripécias para burlar a segurança e entrar na fazenda através da cerca depois de muita caminhada pelo meio do mato.















 Ao chegar à fazenda, a primeira visão que tivemos foi esta. Barracas e automóveis amontoados socialmente. Algo nunca antes visto. Foi uma grande emoção.

Escolhemos um lugar no alto de uma pequena colina para armar nossa barraca e quando nos preparávamos para dar o primeiro rolê para reconhecimento do local, gritos desesperados ecoaram pela colina e uma língua de fogo lambia rapidamente a grama seca em nossa direção. Tivemos que voltar correndo para desarmar a barraca e tirar o carro do caminho do fogo, enquanto dezenas de pessoas tentavam apagar o incêndio com o que se tinha à mão naquele momento. Lençóis, jaquetas e calças jeans. Água só nas represas e nas bicas muito distantes de onde estávamos. Resolvemos, então procurar um lugar melhor, se é que havia, e encontramos um pedaço legal a uns cinqüenta metros do palco que ficava numa espécie de vale, proporcionando uma visão privilegiada para todos os espectadores.


















A vestimenta principal do jovem dos anos setenta e oitenta era o jeans e camisetas de preferência brancas ou de cor clara. No local dos shows, ir de bermuda era convite aos pernilongos de plantão. Daí se explica os corpos cobertos de roupa mesmo no calor.
















 Mas nas represas a coisa era diferente. Na hora do banho a nudez era totalmente liberada. Era uma multidão de corpos nus misturados a animais, dividindo a água fresca das represas e bicas espalhadas pelos cantos da fazenda, pouco além do mar de barracas.




Neste festival, todas as atrações valiam a pena. Era preciso muita energia para assistir ao maior número de shows que fosse possível. Aí já não era um festival só de rock. Foi uma mistura incrível de grandes nomes da música brasileira, todos atravessando o melhor momento de suas carreiras e com uma vontade louca de tocar porque, afinal, aquilo também era uma coisa totalmente nova para todos eles. Teve música de todo tipo. Do rock ao baião, passando pelo jazz e progressivo. Os shows foram memoráveis.

















Por este palco simples, sem cenários cinematográficos e sem fundo, passaram nos três dias, simplesmente: Gilberto Gil, Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Egberto Gismonti, A Cor do Som, Moraes Moreira, Bendegó, Hermeto Paschoal, Papete, Almir Sater, Duduca e Dalvan, 14 Bis, Oswaldinho, Diana Pequeno, Raul Seixas, Tetê Spindola, Zé Geraldo, Itamar Assumpção e Banda Isca de Polícia e mais um bocado de Artistas de menor expressão que tocavam à tarde para não deixar cair o clima e manter a agitação constante daquelas 30 mil pessoas juntas pelo mesmo objetivo. Na foto acima, Zé Geraldo iniciava os trabalhos no primeiro dia do festival.


Os shows normalmente eram longos e carregados de muita energia. Depois de um dia de calor intenso, descia um friozinho com vento quando caia a noite e a gente ia da barraca pra frente do palco enrolados no cobertor e o cantil de conhaque cheio pra aguentar a noite inteira de som intenso. Durante a noite, enquanto rolava os shows, baseados dançavam de mão em mão como vagalumes na escuridão. Uns namoravam, outros dormiam, outros transavam, enquanto muitos estavam em transe em meio à fumaça misturada com a neblina.

Testemunhamos shows inesquecíveis neste festival. O Egberto Gismonti levou artistas de circo originais para encenarem enquanto ele tocava o repertório do seu disco da época chamado Circence, um de seus melhores trabalhos. Gilberto Gil, belo show, Alceu Valença, no auge da carreira, entre Coração Bobo e Cinco Sentidos, num longo e energético show. O Raul teve sua melhor performance da carreira. Ele cantou as música inteiras e seu guitarrista Tony Osanah estava sensacional nessa noite. A Bandeirantes registrou esse show. Quem conseguir uma cópia vai comprovar que estou certo. O Raul tava muito a fim nessa noite. O Luiz Gonzaga parecia fora do contexto. Entrou no palco depois do Raul e chegou a ser vaiado por alguns desavisados, mas depois de algumas músicas a coisa mudou e ele teve que esticar sua apresentação para satisfazer a vontade de todos e provocar a rendição dos que vaiaram. E o Hermeto Pascoal tocou de meia noite às seis da manhã sem parar. Precisava mais? Só isso ja valia a pena mas ainda tivemos country de Zé Geraldo e Almir Sater, A Cor do Som e Moraes Moreira, no auge, sertanejo raiz com Duduca e Dalvan e mais uma porrada de coisa boa.



E tinha a vida no período de decanso que ia até mais ou menos até as duas da tarde, que era quando se ia pro banho nu nas represas, pras barracas de alimentação em torno do grande acampamento, pros passeios pelo meio das barracas vizinhas onde, de repente, se encontrava um conhecido ou se fazia uma nova amizade ou então se dormia o tempo todo para encarar a próxima longa noite. Tudo dentro da maior harmonia. Nesses tres dias, presenciei muita gente usando drogas de todo tipo. Havia até barracas de venda espalhadas pela fazenda, vi muitos casais transando durante os shows, sem o menor constrangimento, muitos casais com filhos pequenos, muitos adolescentes acompanhados dos pais unidos pelo gosto musical e pela liberdade. O policiamento no festival, ficou além das cercas e em nenhum momento foi preciso usar da força bruta. Tudo transcorreu na maior paz. Foram tres dias inesquecíveis.
Voltamos para casa alegres e com as baterias totalmente carregadas. Mal sabíamos que aquilo tudo tinha acontecido porque o pai do Leivinha (Antônio Checchin Junior), organizador do festival, tinha permitido e ajudado no evento, na intenção de manter o filho, que na época era um viajante desmiolado e que rodava pelo mundo, por perto de casa. Ele jamais imaginou que a coisa iria tomar tamanhas proporções.


Aproximadamente trinta mil pessoas se juntaram naquele local mágico para escrever o nome desse evento que foi chamado de quermesse, na história da música brasileira.

Nos meus 56 anos de idade, ví muitos shows nacionais e estrangeiros, fiz muitas viagens também, mas guardo esse festival como um dos momentos mais felizes de toda a minha vida. Estive por tres dias num mundo anarquista, sem regras pré estabelecidas, sem preconceitos e sem lições de moral e sem leis ou políticas antiquadas. Cada um sabia o que tinha que ser feito. Cada um sabia do bem e do mal a que se submetia. Cada um respeitou seu semelhante durante todo o tempo e entre mortos e feridos salvaram-se todos.
















O cara que tirou essas fotos e disponibilizou na internet chama-se Vander Verão e agradeço a ele pelas fotos e pela emoção que elas nos faz sentir.




Ainda existe muita história escrita sobre esse  festival pela internet afora e tenho a informação que um cineasta deconhecido está preparando um documentário sobre esse evento com muito material inédito. É bom ficar ligado.






Zé Vicente











2 comentários:

Márcio Silva disse...

Achei muito bacana você escrever sobre esse festival, sempre ouvimos você falar dele mas ficou perfeito com essa riqueza de detalhes. Parabéns pelo texto, foi um prazer ler isso!

Marcelo disse...

Antes de mais nada, parabéns pelo belo post! Ele dá uma excelente idéia do que foi o festival para quem não pôde estar lá e tenho certeza, tras muitas recordações para quem presenciou. Bela iniciativa dividir conosco tal experiência.Novamente, parabéns!